Revista Real Notícias

1 de abr de 2022

As mulheres das Malvinas fazem sua própria guerra contra o esquecimento

Atualizado: 7 de abr de 2022

Alicia Mabel Reynoso e Stella Maris Morales são duas das 14 enfermeiras que auxiliaram soldados argentinos que lutavam contra o Reino Unido nas ilhas. 40 anos depois, lutam para serem reconhecidos como ex-combatentes: "Se nos levaram como enfeite, confundiram-se", alertam

Stella Maris Morales e Alicia Mabel Reynoso

A Guerra das Malvinas foi coisa só de homens. É o que diz a história oficial, mesmo que não seja verdade. Quatorze mulheres embarcaram em um avião dias depois de 2 de abril de 1982 e durante os quase três meses que durou o conflito com o Reino Unido, elas auxiliaram os soldados feridos no front. Alguns o fizeram a bordo do navio-hospital Almirante Irizar, um quebra-gelo agora destinado à campanha antártica. Outros foram parar em um hospital móvel montado pela Força Aérea em Comodoro Rivadavia, no continente, a 870 quilômetros das Malvinas. Suas histórias foram apagadas da memória de guerra pelos militares: não recebiam medalhas, não eram convidados para desfiles, não eram considerados ex-combatentes e não recebiam pensões.

“Quando saímos para dizer 'nós também estávamos na guerra' eles nos acusavam de mitômanos, loucas, mulheres da vida e muitas outras coisas”, conta Alicia Mabel Reynoso. Em 1982, Reynoso tinha 23 anos e era enfermeira-chefe do hospital da Força Aérea em Buenos Aires. Quando a ditadura argentina decidiu ocupar as Malvinas, um superior ordenou que ele reunisse cinco camaradas que se dispusessem a trabalhar em um hospital móvel que seria instalado na frente. “Procurei o que estava na terapia intensiva, o de guarda, e marchamos em direção às ilhas. Mais tarde, entre as ordens e contra-ordens, nos disseram que o hospital ficaria em Comodoro Rivadavia”, conta Reynoso em entrevista ao EL PAÍS realizada na capital argentina. Entre os escolhidos estava Stella Maris Morales. Tinha então 28 anos. “Corri para uma central telefônica na Avenida Corrientes e liguei para minha mãe para dizer a ela que eu ia para a guerra. Senti que estava fazendo algo importante”, diz Morales.

Alicia Reynoso se lembra muito bem daqueles primeiros dias de guerra. "Vamos, vamos, vá retirar as armas", eles nos dizem. Porque éramos profissionais de saúde e por causa da Convenção de Genebra não podíamos carregar armas, mas eles nos deram uma arma. Não importava muito, porque minha arma não tinha carregador, então era para mostrar. Mantínhamos a arma por baixo de todas as roupas que vestíamos e na faixa tínhamos manteiga de cacau, balas, biscoitos”, conta. A viagem a Comodoro Rivadavia foi outro teste. “Viajamos de avião com 300 soldados sentados no chão e éramos as únicas cinco mulheres. Você pode imaginar as coisas que os soldados gritaram para nós, eufóricos porque estavam indo para as Malvinas e por causa das cinco mulheres que vestiam verde como eles.”

Reynoso e Morales vieram para a entrevista com revistas, fotos e documentos. Mostram as capas onde aparecem vestidos com roupas militares e as inevitáveis ​​manchetes da época: "À guerra com perfume de mulher". Quando foram abordados pelos fotógrafos, eles perambulavam pelo Comodoro Rivadavía, enquanto ajudavam a montar o hospital móvel que havia chegado por terra de Buenos Aires, 1.700 quilômetros ao norte. Em 1º de maio ocorreu a primeira ação de guerra, e as mulheres colidiram de frente com ela. Enquanto a imprensa argentina repetia como um mantra “estamos vencendo”, viam derrota e perplexidade nos olhos dos soldados feridos.

Um soldado britânico verifica um prisioneiro argentino após a rendição das forças armadas argentinas, em 15 de junho de 1982

“Quando os soldados começaram a chegar, percebemos como eles estavam mentindo para nós”, diz Reynoso. “Vi soldados mal alimentados, com roupas inadequadas para o clima de onde vinham. Isso foi violência, eles vieram com muita fome e muito desorientados, sem saber onde estavam”. Ambos lembram os rostos infantis dos feridos. “Não estávamos com medo dos ferimentos —fraturas expostas, queimaduras, estilhaços—, mas o telefonema para a mãe chamou nossa atenção: 'Ligue para minha mãe, onde está minha mãe?' E tínhamos 23 anos, não tínhamos muito mais. Fizemos a contenção que eles precisavam, encontraram uma mulher vestida igual a eles, com um cheiro diferente, com um jeito diferente de falar e que mandou eles se acalmarem”, conta Reynoso.

o retorno para casa

Quando a Argentina finalmente assinou a rendição, as mulheres voltaram para casa. Então começou uma nova e mais íntima guerra pelo reconhecimento. Com o desmoronamento da ditadura e o nascimento da democracia, as mulheres da guerra desapareceram da memória coletiva.

“Depois da guerra, me despedi e perdi contato com meus colegas. Tudo o que a guerra significou para mim, com o qual fiquei muito feliz, foi algo muito terrível. Vivi situações trágicas sem constrangimento, porque nos contivemos para ajudar os soldados. Quando estávamos sozinhos, choramos, oramos e nos lembramos de nossas mães”, conta Stella Maris Reynoso. Durante anos, a guerra foi uma memória enterrada para ela. “Até 2013, Alicia me ligou no telefone e me disse que havia começado uma luta por reconhecimento. Ainda naquela época, se eu contasse para as pessoas que estive na guerra, elas olhavam para mim e diziam: 'Ela é louca, não tinha nenhuma mulher lá'. Por isso não contamos, não tentaram ser malucos, não acreditaram em nós”, diz.

"Aqui parece que a guerra é uma questão de homens", acrescenta Reynoso. “Quando comecei a falar em 2010, eles me contaram tudo, até ameaçaram me matar. Um oficial superior da Força em uma reunião disse que tínhamos ido animar as tropas. Um médico disse: 'Que pena que eu não sabia que as minitas estavam lá.' Isso não faz muito tempo, a agenda de gênero já existia” na sociedade, lamenta. Reynoso e Morales levaram seu pedido ao tribunal para serem reconhecidos como ex-combatentes. Levou onze anos para obtê-lo. Em fevereiro passado, um tribunal concedeu-lhes a documentação, que agora exibem como troféu.

Alicia Reynoso e Stella Maris com seus acompanhantes nos dias de serviço

"Esse papel significa 11 anos de luta", diz Reynoso. Morales lamenta que, 40 anos após o início da guerra das Malvinas, a Força Aérea não os tenha convocado. “Acontece que para eles esse papel é uma derrota. Este papel é um triunfo para a verdade, muitas portas se fecharam para nós, eles nos insultaram. Em um desfile fomos expulsos por não ter esse papel. Não lutamos por dinheiro, lutamos porque estivemos na guerra ao lado dos homens, nunca atrás, sempre em pé de igualdade”, diz. Reynoso concorda ao seu lado: “Não fui animar a tropa. Se nos tomavam como enfeite, ficavam confusos.